sábado, 9 de julho de 2011

Minha Fome


Um dedilhar meticuloso, a precisão dos loucos, daqueles muito loucos a ponto de não sabermos que eles o são. Um olhar vocativo, mas uma vocação de ausência, disseminadora de tudo o que se esvazia, de tudo o que é menos que sonhos. E os sonhos, a bem da verdade, não são e nunca foram nada (isso não é um paradoxo pedindo explicação?!)

Não toque em mim, eu já não posso ser quente. E tocar naquilo que não esquenta não pode exercer fascínio. Pelo menos não deveria exercer e, falando diretamente, não quero que me toque. Sou frio por opção e não por um desastre traumático do destino. Embora eu acredite em Destino. Você pode chegar bem perto, só o bastante para ver minhas chagas, mas não assopre nelas, meu alívio não está no vento frio que sai da tua boca, aí não mora alívio, apenas traição. E que bom que eu sei disso.

Porque um dia disse que sabia o que era amor, e não sabia. Mas agora, aqui! Posso dizer que já sei o que significa amar, e sei porque conheço a mentira - a melhor medida de valor sobre todas as coisas da Terra! E o amor pertence à Terra e a mais nenhum outro lugar. Uma invenção de homens, para si mesmos, como poderia ser diferente? - a maior das materialidades, a mais coesa das relações, o gesso inquebrável que petrifica a todos no seu laço medonho de vapores e suores doces e trêmulos.

Não lhe peço muito, peço?

Só me olhe, olhe minha dor, mas não sinta - o paraíso é para os que amam, não vou para lá... sou a mais pura das almas - porque sofri na mentira e no amor, então não chore para que tua lágrima não embasse teu olho - apenas não quero estar só neste momento, e também não quero sentir. Porque não sou mais humano e nem pertenço a este mundo, não posso sentir coisas de homens, não posso querer coisas humanas, já não posso e não quero... apenas ponha o olho sobre mim e pelo poder da tua indiferença salgada, molhada, eu deixo este mundo para sempre.

O paraíso é a última morada dos acomodados.

Demithri, na Irlanda - 1844.


Imagem: H. Rubiales, Cemiterio Monumentale de Milano, Milão, Itália.

sábado, 25 de junho de 2011

Beleza e Poder


Hoje, mais do que em qualquer momento na história humana, vivemos o dilema da forma, da imagem e, por fim, da Beleza. Dilema porque é a produção de uma oposição cruel – quem tem forma e quem não tem. Entendendo-se forma como “a melhor forma”. Em outros termos, a forma não é mais o meio, é o fim em sim mesma.

Este dilema pode ser desdobrado em uma série de questões, mas gostaria de me deter em apenas duas:

1. Por que a beleza supõe verdade nos dias de hoje?

2. Por que a beleza produz angústia e tortura?

Essas duas questões, de modo algum esgotam o assunto, mas acho que é um começo, porta para pensar uma coisa que parece cada vez mais naturalizada, logo, inquestionável – vivemos num mundo onde a beleza não é mais uma qualidade, é uma condição.

Tenho percebido, seguramente não só eu, o quanto a televisão, o cinema, o próprio teatro (antes espaço da contestação, hoje, cada vez mais da atestação...), veiculam a imagem da beleza como sinônimo de verdade. Desde o casal Willian Bonner e Fátima Bernardes, passando pelos novos atores e cantores globais, existe um consenso velado de que por serem bonitos são, automaticamente, verdadeiros!

Não vou jogar pedra na beleza ou levantar a bandeira da feiúra aqui, é mentira a idéia de que “cada um tem a sua beleza” ou “que a beleza é relativa”, num mundo onde a produção da beleza é determinada por conglomerados que ganham em escala global, pensar dessa forma é, no mínimo, ingenuidade.

Óbvio que há certa relatividade na beleza e, afinal, cada um de nós tem o direito de decidir o que é belo ou não, mas, de fato, decidimos por nós mesmos? O que achamos que é belo e o que é feio é tão diferente assim do que os outros acham, do que a televisão expõe, do que o cinema afirma, do que o teatro vem pregando?

Dizer a verdade hoje parece não importar muito, a imagem que supõe a verdade, sim.

Isso nos leva a segunda questão, cada vez mais, somos tomados por uma angústia interior, por estarmos distantes (uns mais outros menos) de um suposto padrão de beleza determinados sabe-se lá por quem... Bem, até sabemos, mas fingimos não saber, na esperança de que quando perseguimos este “padrão”, o estamos fazendo em busca de uma autêntica e original vontade.

Daí surge a angústia e a tortura – Angústia por não conseguir os músculos que almejamos ou manter o ar de felicidade que necessitamos (afinal, beleza é aparência, sobretudo para os outros). Tortura porque são necessários sacrifícios, às vezes desesperados, para atingir uma perfeição da forma que é pura ilusão fotoshopeada. Passamos fome, violentamos nosso corpo e nosso espírito, em busca do olhar dos outros, a essência da vaidade – não nos bastamos, precisamos subjugar o mundo todo com nossa imagem.

E é nessa ilusão – da verdade e do sacrifício – que acabamos por reproduzir uma mesmice que nos faz “perfeitos”, porque diluídos, porque não mais individuais, porque iguais a todo mundo. Se há alguma perfeição a atingir é a do consenso, onde todos concordamos e todos nos parecemos, mas, como diria Nietszche, “todo consenso fede” (nem sei se foi o alemão mesmo que disse, porém, é a cara dele esse tipo de frase). Perfeição é impossibilidade de transcender um estado de coisas, portanto, um consenso geral de que é assim que deve ser e ponto.

Imperfeição, por outro lado, significa inacabado, portanto, uma necessidade de busca constante, de avanço. Ser perfeito 24 horas por dia deve ser não só um saco, mas a anulação da experiência incostante da vida!

Por Wallace Pantoja

Imagem: Michael Reedy